Como espaço para a discussão da sustentabilidade, o Blog Mundo Possível não poderia ficar indiferente aos debates sobre urbanismo e democratização dos espaços públicos promovidos no Recife pelo movimento Ocupe Estelita.
Por isso, publicamos aqui um artigo de Carolina Dantas, professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e, em breve, colunista sobre moda e sustentabilidade aqui no blog.
Com a palavra, Carolina Dantas.
Semana agitada no Recife
No último 04 de maio, a Câmara dos Vereadores do Recife sancionou a Lei Municipal nº 18.138/2015, que trata sobre o Plano Específico para edificações no Cais José Estelita, Santa Rita e Cabanga. A votação do projeto não estava prevista na pauta do dia e foi incluída em caráter extraordinário pelo presidente da casa, o vereador Vicente André Gomes. Entre as diversas irregularidades cometidas, a vereadora Isabella de Roldão teve seu direito de fala cerceado e membros da sociedade civil foram impedidos de entrar na Câmara.
A reação do Movimento Ocupe Estelita, que organiza a militância em torno da preservação do Cais José Estelita, foi imediata. Por meio das redes sociais, foi organizada uma mobilização em frente à Câmara, na tentativa de pressionar o presidente Vicente André Gomes e o prefeito Geraldo Júlio, que sancionou a lei à distância, pois estava em São Paulo, a se posicionarem sobre a votação e as ilegalidades do projeto Novo Recife.
Como ato de repúdio à votação, foi realizada no dia seguinte uma caminhada que saiu da frente da Câmara dos Vereadores e partiu para o Cais José Estelita, passando pela Avenida Conde da Boa Vista, uma via central do Recife. A caminhada contou com cerca de três mil pessoas. Além de chamar atenção da mídia, buscou-se conscientizar a população ao longo do trajeto. Após a chegada ao Cais, o grupo decidiu seguir até o Riomar Shopping. O centro comercial, cabe ressaltar, é símbolo tanto do poder econômico que tem acirrado as questões urbanas no Recife, quanto de ilegalidades, pois foi construído numa zona de mangue. Além desta questão simbólica, pesou na decisão o fato da polícia ter fechado algumas vias de acesso a Boa Viagem, deixando, contudo, o acesso ao shopping livre.
No dia 07 de maio foi realizada mais uma caminhada, desta vez saindo da praça do Derby e seguindo pela Avenida Agamenon Magalhães, eixo fundamental para a circulação na cidade. Novamente, cerca de três mil pessoas estavam presentes. Diante das recusas do prefeito de conversar com os manifestantes, o grupo seguiu até o prédio onde Geraldo Júlio mora, ficando cerca de quarenta pessoas acampadas em frente ao local. Além da ocupação, os acampados, num protesto bem humorado, realizaram um pequeno evento chamado a Praia do GeJu, como também é chamado Geraldo Júlio, em que aproveitaram o calor da sexta-feira para tomar banho de sol, enquanto aguardavam – em vão – o posicionamento do prefeito. No sábado, dia 09 de maio, o juiz Djalma Nogueira, 4ª Vara da Fazenda Pública, emitiu uma ação obrigando a desocupação do espaço. Na ação, o juiz afirma que a ocupação de bens públicos, como uma rua, estão sujeitos à “licença ou autorização por parte da administração pública”. Aparentemente, no entender do magistrado, o uso de vias públicas para qualquer finalidade exige autorização, o que restringe perigosamente manifestações democráticas. A desocupação foi pacífica e, no domingo, um grande ato reunindo mais de cinco mil pessoas foi realizado no próprio Cais José Estelita e contou com aula pública e show do cantor pernambucano Otto.
Prefeitura e construtoras tentam recuperar o prejuízo/ se desesperam
Há três possíveis explicações para a pressa da Prefeitura em sancionar o projeto de Lei que permite que o Novo Recife seja realizado. Primeiro é o atraso no lançamento do Novo Recife. Graças à mobilização popular, a etapa de vendas e construção das torres no Cais José Estelita foi adiada em pelo menos dois anos, o que despertou a ira das construturas e de políticos vinculados a elas. Apenas da Moura Dubeux, a campanha para eleição do prefeito Geraldo Júlio recebeu mais de R$ 500.000. Depois de um investimento tão alto, é natural que a construtura cobre seu preço. O consórcio que planeja construir o Novo Recife é formado por Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos. Cabe lembrar que a Moura Dubeux foi condenada pela juíza Amanda Torres de Lucena Diniz Araújo por formação de quadrilha e que a Queiroz Galvão teve dirigentes presos pela Operação Lava-Jato. O segundo motivo são os boatos de que a Moura Dubeux está para pedir Recuperação Judicial. Neste caso, o projeto Novo Recife serviria como atrativo e garantia para novos investidores aportarem capital na empresa, evitando sua falência. Por fim, há um motivo de caráter simbólico. No dia 21 de maio, faz um ano da tentativa de demolição dos armazéns por parte do Consórcio Novo Recife, dando início à primeira ocupação da área, que terminou de forma violenta em 16 de junho de 2014 com o Batalhão de Choque agredindo membros da sociedade civil.
Maconheiros desocupados
Em função das manifestações e da ocupação ocorridas na semana passada, uma campanha claramente difamatória tem acusado os participantes do Ocupe Estelita de serem “maconheiros desocupados”. O grupo do Facebook Direitos Urbanos Recife conta com mais de trinta mil pessoas, número bastante significativo. O que assusta políticos, empresários e pessoas desfavoráveis ao movimento é a capacidade de articulação e a quantidade de pessoas envolvidas no debate. Pela primeira vez as questões urbanas do Recife são discutidas abertamente, o que evidencia um confronto entre os interesses do capital que articula o poder político e as construturas, de um lado, e uma parcela dos cidadãos, do outro. O que o Ocupe Estelita rejeita é um modelo desenvolvimentista voltado para os interesses privados – das construtoras e eventuais investidores do Novo Recife – contra interesses de ordem pública – meio ambiente, patrimônio histórico, criação de espaços de convívio público, entre outros. A acusação de “maconheiros desocupados” é feita do ponto de vista de uma moral essencialmente patrimonialista, em que todo o tempo deve ser dedicado ao trabalho. Neste sentido, os que fazem tal acusação não percebem que o tempo que os membros do Direitos Urbanos dedicam ao movimento é útil e legítimo.
Próximos passos
O Prefeito Geraldo Júlio parece não ter entendido ainda o recado que veio das ruas. Além de não ter se pronunciado oficialmente sobre a lei sancionada e sobre a mobilização popular da semana passada, está sendo elaborado um projeto de lei no qual o município abdica do controle urbanístico em prol das construtoras. Segundo o projeto de lei (ainda sem número) que “estabelece novos procedimentos relativos à aprovação de projeto e emissão de habite-se no âmbito da Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano”, o habite-se ou aceite-se de qualquer edificação poderá ser concedido na modalidade de “alvará funcional”, no qual o responsável técnico pela construção – e não a Prefeitura – apenas declara ter executado seu projeto conforme a lei. Contar com a responsabilidade das construtoras é, em princípio, facilitar as irregularidades que elas já cometem. Esqueça-se o Novo Recife por um instante. Hoje o habite-se está relacionado à questões como acessibilidade. Segundo o texto que se pretende aprovar, caberá ao construtor dizer que a sua obra atende as diretrizes de acessibilidade previstas em lei. Será que é mesmo possível contar com essa boa vontade toda?
A jornalista Marisa Gibson, do Diário de Pernambuco, se refere ao Cais José Estelita como “primeiro erro” no caminho de Geraldo Júlio para a reeleição. Cria-se com isso uma espécie de círculo vicioso. Sem apoio popular é preciso buscar recursos para a campanha de 2016 e as construtoras são velhas conhecidas fontes de financiamento. Quanto mais recursos levantados, maior o comprometimento com os financiadores, de modo que as ilegalidades na construção civil e a criação de brechas nas leis municipais para as construções não devem parar tão cedo. Por outro lado, o Movimento Ocupe Estelita também não.
O embargo do IPAHN à obra permanece vigente. No dia onze de maio o Ministério Público de Pernambuco lançou uma nota técnica afirmando que a Lei Municipal nº 18.138/2015, que estabelece a criação do Plano Urbanístico para o Cais José Estelita, Cais de Santa Rita e Cabanga, representa risco de perda e descaracterização do patrimônio cultural reunido no Pátio Ferroviário das Cinco Pontas.
O Ocupe Estelita não é um movimento isolado. No Brasil tem havido manifestações semelhantes: em São Paulo, com o Parque Augusta; no Rio de Janeiro, com o Ocupe Golfe; em Belo Horizonte, com o Parque Isidoro; em Maceió, com a defesa ao bairro da Garça Torta, e, em Porto alegre, com o parque Farroupilha, apenas para citar alguns. Em nota recente, as Nações Unidas alertam para o adensamento populacional que deve ser acelerado até 2050. A resposta para resolver as tensões provocadas pelo adensamento populacional e a segregação nas áreas urbanas pode ser o “new urbanism”, novo urbanismo, uma corrente urbanística que prevê o envolvimento e engajamento da população, a integração de espaços públicos que viabilizem zonas de uso misto, com moradias, comércio e lazer, além da criação de alternativas de mobilidade não motorizadas e a promoção de transporte publico de qualidade, entre outros preceitos.
O Novo Recife contraria a lógica do novo urbanismo, provocando a criação de uma área segregada de moradias, hotéis e comércio de alto padrão e com um impacto de mobilidade de cerca de doze mil viagens de automóveis por dia. A urbanista Raquel Rolnik fala sobre a importância do novo ativismo que o Movimento Ocupe Estelita representa e do desejo dos sujeitos de participarem ativamente da definição do destino do lugar onde vivem. O Ocupe Estelita é sobre isso, o destino não só do Cais José Estelita, mas da cidade do Recife. Cabe agora ao Recife escolher se quer ser uma cidade do futuro, pautada por um padrão urbanístico contemporâneo, ou se quer ficar no passado, enchendo-se de torres e áreas de exclusão.
Por Carolina Dantas
Foto: Movimento #OcupeEstelita